A apreciadora da dúvida

 Pode ser que a verdade absoluta seja que não existam verdades absolutas. Se assim for, teremos sempre o benefício da dúvida. E a dúvida, sem dúvida nenhuma, era a maior certeza que aquela simpática moça tinha na vida.


 Já na infância causava confusão entre as amiguinhas e os amiguinhos de brincadeiras:

- Roda, roda, roda. Pé, pé, pé. Roda, roda, roda caranguejo peixe é. Cantavam a meninada.

- Caranguejo não é peixe ou é? Questionava a menina.

Mas o “roda roda” continuava e ninguém ligava para os questionamentos da menina. Em brincadeira de criança não existe espaço para dúvidas. Existe um território bem definido e brincadeira é algo muito sério.

A menina não tinha opção, ou ficava mergulhada nas dúvidas ou brincava. Naquela época preferiu continuar a brincadeira, mesmo que contrariada. Resmungava baixinho:

- Caranguejo não é peixe. Ou é?

A escola propiciou um salto gigantesco no arsenal de dúvidas daquela menina. Na matemática, no português, na geografia e até na educação musical:

- Por que somente sete notas? Por que não 19? A música não pode ser limitada.

Cresceu a sombra de todas as dúvidas que alguns nem se importam ou consideram até que chegou aquele momento crucial do jovem: o vestibular. Muitos jovens tem esse momento cruel de não saber o que fazer e isso tortura muito, mas aquela menina teve o único momento de certeza:

- Vou fazer Filosofia.

E assim foi. Nas provas do vestibular teve inúmeras dúvidas, mas passou tranquilamente e começou a estudar filosofia. Notou que os pré-socráticos tinham muitas dúvidas, mas tinham poucos elementos para sanar as dúvidas. Aquela coisa de água, ar, fogo e terra era muito pouco, eles deveriam misturar todos esses elementos e montar uma filosofia abrangente. Seguiu o curso.

Com Sócrates deu-se uma complicada nas coisas, pois esse tal de conhecer-se a si mesmo poderia ser perigoso, mas o que mais encantava a moça era a frase “só sei que nada sei”. É isso. Tornou-se socrática de primeira ordem. Mas quando chegou em Platão é que o potencial das suas dúvidas se elevou drasticamente. O mundo das ideias, das simulações, das imperfeições da realidade percebida entre tantas outras questões, a deixava fascinada.

Não ligou muito para Aristóteles e somente voltou a se empolgar com Descartes:

- Penso, logo existo. Não saia da sua mente.

O encantamento maior chegou com Berkeley e seu potencial de dúvidas atingiu o nível mais elevado. Quem sabe não vivemos em uma simulação.

Formou-se com uma bagagem de dúvidas, que sem dúvida alguma, a colocaria no topo de um ranking, mas tinha dúvida que tal ranking existisse. Mas sempre existe algo que nos marca mais e geralmente são fatos que nos remetem a infância. Muitas dúvidas acumuladas e apreciadas por longo tempo. Que privilégio!

O mundo roda, roda, roda e ela encontrou sua alma gêmea. Foram comer em um restaurante de frutos do mar e pediram caranguejos. Suas dúvidas da infância pareciam estar vivas em sua mente:

        - Caranguejo não é peixe. Ou é?

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