Claro
que o título dessa crônica entrega seu propósito. Sim, a lembrança de São João
da Cruz e sua extraordinária obra “A
noite escura da alma” inspira um momento de reflexão. E mesmo com toda a
dificuldade de entendimento dos poemas do santo, pede-se a permissão para
alguma licença filosófica nessa reflexão.
Pode
ser que sejamos tentados em algum momento da vida. Pode ser que a tentação nos
leve duvidar e por fim sucumbir e se entregar, mas não será o fim e sim um novo
começo. Se não for provocado nunca, também não conhecerás aquilo que é
significativo. Se não for tentado ou contrariado não saberás o valor
significativo das coisas. Se não passar pela noite sombria o dia verdadeiro não
se manifestará.
Em
algum momento soará um despertador estridente que poderá assustar e trará um
evento que em princípio parecerá insignificante e fugaz, mas irá te provocar
paulatinamente de maneira progressiva. Os inimigos surgem por todos os lados,
mas não são seus verdadeiros inimigos, pois seu maior inimigo reside
interiormente. Os eventos tentadores começam a expandir, mas como são
passageiros sequer são notados. E a noite vai caindo.
Seus
temores agora parecem mais reais que antes, mas ainda sentes que é forte o
suficiente para enfrentá-los e assim continuas a não se importar tanto. Tudo
voltará ao normal no dia seguinte. Seu maior inimigo se manifestará e mostrará
seu nome. Essa soberba construída ao longo do tempo será provocada e
confrontada com os temores que agora parecem mais reais que nunca. A noite
chega.
Todos
os pecados capitais chegarão para atormentá-lo, começando pela soberba. Tudo
aquilo que fez até agora, mesmo todas as coisas boas, fizestes para você mesmo.
Estiveste preso a você mesmo, mas ainda não sente que precisa se libertar. A
avareza entra na fila para atormentá-lo e chega a sua vez. Estás preso e não
admites perder as conquistas. Sem elas não haverá justiça. Mas quanto mais se
perde mais se agiganta sua ira. Ela é sua arma de combate contra toda e
qualquer injustiça. Mas é uma arma tão frágil que te levará ao desânimo e
consequentemente a preguiça. Sentirás fraco e buscará refúgio na gula que não o
satisfará. Buscarás fortalecer seu ego com momentos de satisfação tendo a luxúria
como companheira. E já nos estertores desse roteiro e sem nada, restará a
inveja como aliada. A noite sombria atinge seu apogeu.
Abandonado
e sem nada. Sequer os piedosos de outrora aparecem e mesmo os bondosos seres
espirituais não o confortam. Ninguém te quer, aceita ou conforta. É o fim?
Claro que não, mas a noite ainda não acabou. O dia virá.
Esse
movimento contínuo dos eventos sugere que tudo passa, ou melhor, que tudo se
transforma e a noite sombria da alma será sua transformação. Os eventos que se
seguem às vezes são tão bons que te encorajam a continuar sendo aquele velho
egocêntrico de antes. Mas também ocorrem revezes que te jogam para baixo. Essa
gangorra de eventos sugere que ainda não estás transformado. A noite sombria vê
a chegada dos primeiros raios de luz emanados pelo sol.
Despertado
após uma interminável e tenebrosa noite você caminha em direção à janela e nota
a pequena claridade que aos poucos vai se intensificando e ao mesmo tempo lhe
arranca um discreto sorriso. A noite sombria foi embora e um novo dia começa.
Essa transformação da noite escura para o dia luminoso é a inspiração para sua
própria transformação. Não serás jamais o mesmo e não cometerás os mesmos
pecados. Assim segue a vida, se transformando como a noite e o dia. Assim é a
vida.
Pode
ser que exista algum segredo da vida, mas como disse São João da Cruz em uma de
suas frases:
-
Pode ser “... que o segredo da vida
consiste em aceitá-la tal como ela é...”.
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