Seu Ademar abriu a porta de casa sorrateiramente, como se não quisesse que outros soubessem de sua presença, e adentrou a cozinha. Tirou os sapatos e seguiu até a sala de estar, onde avistou sua neta (ou melhor dizendo, os pés de sua neta) deitada no sofá. Nas últimas semanas, ele havia mudado o móvel para uma posição estratégica. Antes, se alguém estivesse na sala, era possível perceber a sua chegada, ainda que silenciosa, agora, o sofá ficava de costas para a cozinha. O ângulo escolhido, claro, não era um acaso. Ele percebera que sua neta, assim que ele chegava, colocava fones de ouvido, fingia que estava dormindo, começava a estudar a matéria que ela mais detestava com um ímpeto de dar inveja ou, às vezes, fazia os três ao mesmo tempo: dormia, ouvindo música, com a cara no livro.
- Pronto, voltei do
médico – disse ele, anunciando sua presença.
- Legal – ela respondeu.
Ela podia não ter a idade
do avô, mas não tinha nascido ontem. Sabia que ele queria conversar.
Infelizmente o fone estava longe e o livro, guardado. Não deu outra.
- Aconteceu algo diferente
– Ademar prosseguiu.
- Hum.
- Esqueci de levar meu
celular dessa vez.
- E aí? – ela decidiu dar
corda, para ver se ele encerraria a conversa mais rápido.
- Aí que eu comecei a
reparar nas pessoas e nas coisas ao redor, sabe? Não dava pra jogar aquele
joguinho dos doces.
- Qual nível você tá
mesmo, vô? Quinze mil?
- Dezoito, mas isso não
vem ao caso. Sabe o que eu vi? Ninguém com um livro na mão!
“Pronto, fez o discurso,
chegou na lição de moral. Era esse o ponto” pensou a neta.
- Nenhum livro, sabe. E
uma galerinha estranha, nova, que nem você, falando umas coisas que eu não
entendo. O que é “páia”? E “crinji”? – continuou, para descontentamento da
neta.
- É cringe, vô. A gente
fala assim hoje.
- Não sei falar isso. E
tava um baita barulho, sabe? Povo falando alto, ouvindo música, criança
chorando. O cara do meu lado comendo polvilho, sujando tudo, mastigando de boca
aberta. As ruas todas esburacadas, o ônibus balançando, e ainda por cima
pisaram no meu pé! – a lista de reclamações era infinita.
- Vô, acho que você
esqueceu como é pegar transporte público.
- Até parece! Mas hoje,
que eu fiquei reparando, parece que me incomodou de outro jeito... – falou e
deu uma pausa, pensativo.
- É que o senhor tá
velho.
- Não. É outra coisa.
- O que, então?
- Faltou o celular para
me distrair.
- Da próxima vez, leva um
livro – retrucou.
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