É muito provável que este texto pareça algo saído diretamente de um episódio de Black Mirror. Pensando bem, muita coisa atual é mais Black Mirror do que a própria série. Enfim, adiante.
Se não pode vencê-los, junte-se a eles. Esta frase, em caixa alta, estampa a camiseta favorita do CEO, Qualquer Outro, da mais bem-sucedida empresa de terceirização de São Paulo, a Três ao Cubo. Sentado em seu escritório, ele observa o fluxo das ações. Há meses não pisava na sede, pois esqueceu que havia terceirizado o próprio cargo, e teve que expulsar o surpreso rapaz que ocupava a cadeira minutos antes.
Hora do almoço. Seu telefone vibra.
- Bom dia, Sr. Outro. Pretende almoçar hoje?
- Bom dia. Acho que vou, sim. Vi um restaurante novo na Vila Mariana que parece ótimo.
- Certo, assim que o Sr. passar o endereço, envio o rapaz que você contratou.
- Obrigado.
Fim do almoço. Nova ligação.
- Sr. Outro, o rapaz acabou de retornar.
- Então?
- Disse que estava apimentada demais, mas saborosa. Ficou com muita sede e pediu um suco de abacaxi com hortelã. Terminou a refeição com um sorvete.
- Perfeitamente, o relato bate. Obrigado.
Reclinado em sua cadeira, Outro passa a mão em sua nuca, onde havia sua mais nova invenção, o Compartilhador de Sensações, ainda em fase de teste. Bem que ele havia estranhado começar a suar repentinamente, ainda que sua sala tivesse ar-condicionado. E depois o frio que parece alcançar o cérebro. “Os testes vão bem”, pensa ele. Decide esticar as pernas e respirar um pouco de ar puro.
Da rua, ele contempla a sede da empresa. Dez andares, um prédio imponente no coração da cidade. Mais de mil funcionários, dos quais ele conhecia no máximo dois ou três, pois todo o resto fazia auto-terceirização e a rotatividade era alta.
Toca o telefone, desta vez inesperadamente.
- Sr. Outro! Não sabemos o que fazer.
- Calma lá, calma lá. O que houve? – diz, meio irritado. Por que não ligaram para o seu terceiro? Ele é quem lida com assuntos urgentes.
- Um cliente chegou com um pedido absurdo.
- Como assim?
- Ele gostaria que terceirizássemos suas necessidades básicas.
- Suas... necessidades?
- Desde que não conseguiu se segurar em público, não consegue mais sair de casa, então decidiu nos contatar e ver se era possível.
- Olha aqui, por acaso isto é alguma piada de mau-gosto?
- Não, senhor! O caso é q...
- Eu entendi o caso! Mas desde que o presidente disse que era para cagar dia sim e dia não, não tem como isso dar lucro! Pode dispensar!
Irritadiço, desliga o celular e aperta a cabeça.
- Parece que o rapaz que contratei para almoçar por mim sofre de enxaqueca. Melhor procurar um diferente.
Segue a vida.
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